A Bolívia cercada por vizinhos e passados tempestuosos

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Por Sullkate M. Quilla

A Bolívia, no coração de América do Sul, é um país mediterrâneo que se encontra rodeado por terra, sem uma saída ao mar. Um país sem litoral, e que por isso enfrenta o Chile numa demanda histórica para conseguir acesso ao Oceano Pacífico – a qual também envolve o Peru, não só por razões históricas como também jurídicas.

Independente das suas características geográficas, a Bolívia também enfrenta outro problema: quatro de seus cinco países vizinhos são governados por empresários neoliberais. O gigante Brasil sofre nas mãos do golpista Michel Temer, a Argentina é comandada por Mauricio Macri, o ruralista Horacio Cartes é o presidente do Paraguai, assim como o consultor Pedro Pablo Kuczynski é no Peru. O quarteto se caracteriza por defender a ideologia da espoliação das arcas do Estado em benefício de uma elite que integra o poder fático, junto com os meios de comunicação hegemônicos.

Dentro de dois meses, essa situação ficará pior, já que o Chile da médica socialista Michelle Bachelet logo dará lugar ao Chile do megaespeculador Sebastián Pïñera. Portanto, a Bolívia de Evo Morales receberá hostilidades por todos os lados.

São esses políticos empresários os que aplicam os planos de ajustes programados pelos organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional e o (FMI) e o Banco Mundial, e representam os sonegadores de impostos (aliás, ao menos dois deles, Piñera e Macri, são acusados disso em seus próprios países e figuram em escândalos internacionais como os Panamá Papers), especialistas em paraísos fiscais, beneficiários de sócios e grupos concentrados, cúmplices de genocidas, e um longo etecetera tóxico para as grandes maiorias.

Assim, os vizinhos menos tóxicos do bairro boliviano a partir deste ano serão os quase vizinhos, o Equador de Lenín Moreno e o Uruguai de Tabaré Vázquez, que só estão próximos mas não possuem fronteiras diretas com o país.

pesar desse panorama pouco animador e do litígio por uma saída ao mar vigente na Corte Internacional de Justiça de Haia contra o Chile – que limita a projeção de complementariedades e intercâmbios, a verdade é que nestes últimos doze anos o governo boliviano se esmerou em manter relações cordiais com seus vizinhos, e inclusive realizou bons negócios com eles, como a venda de gás natural líquido e fertilizantes a Brasil, Paraguai, Argentina e Peru.

O problema maior é enfrentar o tema da falta de uma saída ao mar, um obstáculo que existe há 148 e dificulta o desenvolvimento do país. Morales busca também outras soluções, como a construção de um trem bioceânico, em investimento que envolve outros vizinhos – esteve recentemente em países europeus em busca de um financiamento de 10 bilhões de dólares para o projeto, que uniria o Porto de Santos, no Atlântico brasileiro, ao Porto de Ilo, no Pacífico peruano, cruzando a Bolívia.

Mas não é de hoje que o país enfrenta cenários desfavorável com respeito a esses vizinhos. Em décadas passadas, as do terror da Operação Condor, quando Argentina, Brasil, Chile e Paraguai enfrentavam ditaduras militares, assim como a própria Bolívia – todos seguindo o roteiro made in USA –, havia por parte dos governos uma atitude colaboracionista entre todos para aniquilar os dirigentes e os movimentos sociais e revolucionários da região, um esforço que terminou com um saldo de milhares de desaparecidos, mortos, torturados, enclausurados.

Em agosto passado, a Bolívia estabeleceu uma Comissão da Verdade para investigar as violações aos direitos humanos cometidos durante os governos militares nos Anos, 60, 70 e 80. O presidente Evo Morales nomeou por decreto a cinco membros da comissão, entre eles o veterano ex-líder mineiro Edgar Ramírez, 35 anos depois do último governo militar, que entregou o poder a um civil após esporádicas administrações democráticas.

Esta é a segunda tentativa da Bolívia para averiguar o que ocorreu entre 1964 e 1982. A primeira vez foi logo depois do fim do regime militar, naquele mesmo ano de 1982, por iniciativa do então presidente Hernán Siles. Segundo a informação histórica existente, entre 1964 e 1982 foram registrados ao menos 1392 assassinatos políticos, 486 casos de desaparecidos e 2868 exilados ou confinados. O ícone dos desaparecidos é o líder socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz, morto em 1980 durante o golpe do general Luis García Meza, hoje preso com sentença de 30 anos de prisão.

A nova comissão é o resultado de uma lei que o próprio Morales aprovou em 2016. “Quando falamos de ditaduras e de golpes de Estado, falamos dos Estados Unidos e de todo um programa que obedece a uma questão geopolítica de domínio, e um domínio que visa saquear os recursos naturais”, afirmou Evo. Por sua vez, Edgar Ramírez destacou que “a Comissão da Verdade foi criada para revelar o que verdadeiramente ocorreu na Bolívia, e que foi ocultado por várias ditaduras”. E não custa lembrar que esse ocultamento também contou com a ajuda dos tempestuosos e cúmplices vizinhos.

Sullkata M. Quilla é antropóloga e economista boliviana, e analista associada ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégico (CLAE)

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